Quando o diretor se torna um gestor
Por Terezinha Azerêdo Rios (*)
Em que medida as condições sociais definem a escola? Até que ponto a escola pode transformar as condições sociais? As duas perguntas, que trazem perspectivas de ações diversas, costumam vir à tona quando se reflete sobre o papel da Educação na sociedade. E dar conta desse compromisso - ou, ao menos, tentar - sempre foi o grande desafio das escolas, embora, muitas vezes, as mazelas sociais funcionem como uma justificativa quando professores e diretores falham em suas tarefas. Na prática, quem responde diretamente por essa cobrança no dia-a-dia é o diretor escolar. "Existe uma grande expectativa de transformação social por meio da transformação pessoal que a Educação proporciona", diz Nora Rut Krawczyk, professora de Sociologia da Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Essa é a promessa da escola como instituição."
Hoje, na avaliação de secretarias municipais e estaduais, institutos de formação, universidades e do próprio Ministério da Educação, o diretor é a figura central para promover esse ganho de qualidade de que a Educação brasileira tanto necessita. E, da mesma forma que seu papel é importante, sua rotina está cada vez mais complexa. Ele deve, cotidianamente, dar conta de diferentes "gestões": do espaço, dos recursos financeiros, de questões legais, da interação com a comunidade do entorno e com a Secretaria de Educação e das relações interpessoais (com funcionários, professores, famílias). Tudo isso, com um objetivo maior, que, se não é novo, ganhou uma importância que parecia um pouco esquecida nos últimos tempos: a aprendizagem dos alunos.
Sim, a expectativa em relação à função vem mudando muito nas últimas décadas. Um dos momentos mais importantes dessa transformação ocorreu em meados dos anos 1980, quando a idéia de que o modelo de gestão dos sistemas públicos estava ultrapassado virou um consenso entre os educadores. A solução foi aproximar os serviços governamentais dos princípios da gestão empresarial, nos quais a busca pela eficiência é o maior valor. Desde então, de certa forma, a gestão escolar vem se adaptando para incorporar essa lógica à realidade das salas de aula. "O que se quer é formar vida inteligente dentro do organismo escolar", afirma Fernando Almeida, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e ex-secretário da Educação da capital paulista. Por tudo isso, prossegue Almeida, o diretor, ou melhor, o gestor deve ter uma visão global da instituição e, ao mesmo tempo, focada nos alunos. "É ele quem cuida de todas as partes desse organismo vivo", justifica.
Do lado de dentro
Imagine uma escola em que o gestor seja visto como um chefe autoritário, pelo qual todos sentem mais temor do que respeito. Agora vislumbre um cenário apenas de cobrança de resultados e exigência do cumprimento de regras, sem a participação nas decisões conceituais e corriqueiras do dia-a-dia. E se esse mesmo diretor só se ocupar das questões burocráticas do cargo, deixando de lado tudo o que se refere às relações humanas, exceto o trato com alunos indisciplinados, encaminhados à sua sala como uma forma de punição? Talvez nem seja preciso ter tanta imaginação, já que muito dessa postura antiquada e praticamente alheia ao cotidiano educacional - na mais precisa acepção da palavra - ainda está bastante presente em algumas escolas brasileiras.
VALORIZAÇÃO HUMANA A postura do diretor imprime marca às relações interpessoais no ambiente escolar. Professores, funcionários, pais e alunos ao mesmo tempo ensinam e têm coisas a aprender
Embora um tanto extremo, o exemplo serve para mostrar que a forma como o gestor se posiciona na escola exerce grande influência sobre como se dão as relações interpessoais. O entendimento de alunos, pais, funcionários, professores e, sobretudo, dos próprios diretores sobre seus papéis na dinâmica escolar é decisivo para determinar a qualidade da instituição. E mais: se todos não enxergam que sua função deve, acima de tudo, colaborar para um processo educativo exitoso, é hora de procurar reverter esse quadro. "É preciso ressignificar o papel do diretor na escola e o da escola na comunidade", afirma Roberta Panico, coordenadora pedagógica da formação de gestores do Centro de Educação e Documentação para Ação Comunitária. "A equipe tem de perceber que o gestor é o articulador de demandas e soluções para a aprendizagem das crianças. E que é essa a função social primordial de toda escola."
Para a autora portuguesa Isabel Alarcão, não apenas os alunos, mas toda a comunidade deve se desenvolver no convívio escolar. Esse é um dos aspectos do conceito de "escolas reflexivas", criado por ela. "Elas qualificam não só os que nela estudam mas também os que nela ensinam ou apóiam estes ou aqueles", afirma a autora, em sua obra Escola Ref lexiva e Nova Racionalidade. "Ela gera conhecimento sobre si própria e, desse modo, contribui para o conhecimento sobre essa instituição chamada escola."
DE OLHO NO ENTORNO A escola se insere num bairro e sua equipe deve conhecer a realidade local. Só assim é possível conhecer as necessidades das pessoas e adequar-se a elas
Embora o grande foco do gestor deva ser a aprendizagem dos alunos, de forma alguma isso diminui a importância do coordenador pedagógico. A parceria entre os dois é uma das mais relevantes na construção de uma escola de qualidade. Para isso, eles precisam estar sempre muito afinados. A principal função do coordenador é cuidar da formação dos professores, um dos aspectos decisivos para implementar o projeto pedagógico decidido coletivamente pela comunidade escolar (processo que, como um todo, é de responsabilidade do gestor).
Do lado de fora
Nas últimas décadas, as demandas sociais em relação à escola têm aumentado substancialmente. O fenômeno se deve, principalmente, ao crescimento da violência urbana - muitas vezes, associada ao consumo e ao tráfico de drogas -, à falta de perspectivas profissionais e ao aumento da competitividade e do individualismo provocados pela globalização da economia.
Cada vez mais, exige-se que a escola colabore para transformar esse cenário, perceptível do lado de fora de seus muros, tematizando-o em suas atividades diárias com o objetivo de melhorar o futuro dos estudantes. "Desenvolver uma visão crítica da realidade, trazendo-a para a sala de aula como uma reflexão propositiva, é algo essencial", diz Nora Rut, da Unicamp. "A instituição de ensino não é um local para esquecer a dura realidade, como alguns colegas acreditam."
FOCO EDUCATIVO Lidar com a burocracia não pode ocupar todo o tempo do diretor. Além de conhecer leis e normas e saber gerir recursos, o foco principal deve ser a aprendizagem de crianças e adolescentes
Assim, a equipe de professores precisa se organizar para promover discussões sobre temas locais e globais. Além disso, a postura da equipe e as situações vivenciadas na escola servem como base para abordar temas como cidadania, tolerância e respeito. "É o gestor quem imprime uma cara à instituição, quem retoma os projetos institucionais, que são permanentes e abrangem a escola como um todo", diz Márcia Cristina da Silva, formadora do Instituto Avisa Lá, de São Paulo. "É ele quem lembra a todos o que o grupo quer ser e que alunos pretende formar."
Na teoria, tudo faz sentido. Mas o dia-a-dia da maioria é muito mais ocupado com a solução de emergências do que com o planejamento pedagógico. "Que diretor costuma ter muita dificuldade em dizer o que faz parte de sua rotina de trabalho, pois passa o dia resolvendo problemas. Mas nem tudo na escola é urgente. Ele pode determinar uma divisão de tempo, reservando um horário fixo para atender pais, para reuniões com o coordenador etc.", propõe Márcia Cristina. Vitor Henriques Paro, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, resume: "O diretor tem de ter visão pedagógica em todas as suas ações. As atividades burocráticas são antiadministrativas quando não estão relacionadas com o pedagógico. A finalidade de todo o trabalho é garantir que a relação entre ensino e aprendizagem se concretize". Quando isso ocorre, o diretor se transforma, efetivamente, num gestor.
Séculos de história
As revoluções Francesa e Industrial deram cara nova ao Velho Mundo, inclusive no que se refere ao acesso à Educação. No final do século 18, passou para o Estado a incumbência de educar os cidadãos, o que levou à grande ampliação do número de colégios na Europa nos dois séculos seguintes. "A escola substituiu a Igreja na formação dos jovens", afirma o educador português Rui Canário. "Por isso, tem um papel fundamental na consolidação das nações modernas".
No Brasil, os jesuítas foram os principais responsáveis pelos primeiros passos da nossa Educação. Em 1759, os religiosos foram expulsos do país, deixando um legado de 17 colégios e "escolas de primeiras letras". Com um decreto do imperador Pedro II, em 1822, instituiu-se um modelo de ensino conhecido mais tarde como "aulas avulsas", em que um adulto se responsabilizava por crianças de diferentes idades e percursos. Essas "escolas" funcionavam na casa do próprio professor.
Na época, os funcionários das poucas instituições de ensino não tinham formação pedagógica, já que a primeira Escola Normal brasileira só surgiu em 1835. "Os diretores eram, em geral, pessoas generosas, conhecidas por suas benemerências e, por isso, designadas para o cargo", explica Lisete Arelaro, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
A primeira iniciativa visando a criação de uma rede de escolas se deu apenas durante o Estado Novo (1937-1945). O ensino formal, então, era pautado pelas Leis Orgânicas de Educação, que se aproximavam dos ideais fascistas, caros à ditadura de Getúlio Vargas. Nessa época, a proposta era qualificar a mão-de-obra nacional, acompanhando o ritmo de crescimento da indústria mundial e das novas profissões que nasciam.
Com a Lei de Diretrizes e Bases de 1971, a Educação no Brasil foi estruturada em sistemas municipais, estaduais e federal. Durante a ditadura militar (1964-1985), cada diretor tinha também o dever de enquadrar o projeto educacional de sua escola ao ideal de potência nacional a que o país aspirava. Com a redemocratização, na década de 1980, o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, que congregava entidades sindicais, acadêmicas e da sociedade civil, foi uma das instituições mais atuantes para a inclusão, na Constituição federal, da determinação de que a escola brasileira tivesse como preceito a gestão democrática - vigente até hoje.
(*) Graduada em Filosofia e doutora em Educação