Como conciliar cantina escolar, produtos industrializados e alimentação saudável
Por Martha Fonseca Paschoa Amodio (*)
A alimentação escolar na rede pública, bem como a oferecida na rede privada têm, ambas, alguns objetivos em comum: suprir parcialmente as necessidades nutricionais dos alunos, melhorar a capacidade no processo ensino-aprendizagem e formar bons hábitos alimentares. A principal diferença está no fato de o programa público ter também como objetivo não só evitar a evasão e a repetência escolar, mas garantir uma refeição com 15% das necessidades nutricionais diárias. Hoje, na rede privada, não há um índice nutricional a ser cumprido, razão pela qual cada instituição tem a liberdade de defini-lo, visto que, diferentemente da realidade de boa parte dos freqüentadores da escola pública, a refeição oferecida ao aluno da escola privada não é a única do dia.
Acima de tudo é muito importante controlar a quantidade de sal, açúcar e gordura nas refeições dos alunos, porque as crianças brasileiras vêm, há muitos anos, modificando o seu padrão alimentar. Só que, infelizmente, o que se observa é um aumento no consumo de alimentos densamente energéticos, como doces, salgadinhos e refrigerantes.
O lado menos saboroso da história é que esse tipo de consumo pode gerar, a médio ou longo prazo, uma série de problemas para a saúde. As principais consequências de uma alimentação inadequada são diminuição da capacidade de raciocínio e de memorização, dores de cabeça, alteração no humor, hipoglicemia e obesidade.
Estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que doenças crônicas, tais como diabetes, obesidade, câncer, doenças cardiovasculares e respiratórias, aparecem como a principal causa de mortalidade e de incapacidade no mundo, sendo responsáveis por 59% dos 56,5 milhões de óbitos anuais.
Segundo os pesquisadores, uma mudança nos hábitos alimentares já resultaria num impulso substancial para a redução de tais taxas. Em nosso país, o ambiente escolar, a começar pelo serviço da cantina, tem participação fundamental no aumento do número de crianças obesas. Dados da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) indicam que a obesidade infantil dobrou nos últimos dez anos. A taxa atinge hoje mais de 5 milhões de crianças, o equivalente a 15% da população brasileira inserida nessa faixa etária.
Não se pode esquecer que é principalmente na infância que são adquiridos os vários hábitos alimentares, os quais comumente se estendem pelo resto da vida. Uma alimentação correta, mantida durante toda a infância, colabora na prevenção de doenças e na preservação da saúde. Daí a importância de se oferecer à criança um cardápio saudável e variado.
Fica claro que o fundamental é despertar nela não apenas o prazer de se alimentar como a consciência dos benefícios, presentes e futuros, que uma boa alimentação pode lhe proporcionar. Além disso, a refeição escolar, ao representar um consumo de alimentos fora do âmbito familiar, passa a ser concebida pelo aluno como “novidade”. É possível que haja, assim, um entendimento que associe o que é oferecido na escola ao que seria eventualmente o correto. Nesse sentido, a alimentação do escolar deve ser, sempre, de ótima qualidade nutricional.
Resumindo, a alimentação escolar deve enfocar basicamente dois aspectos:
- - Quantitativo, que se refere à disponibilidade de alimentos para atender aos alunos.
- - Qualitativo, que se refere à qualidade dos alimentos que estarão disponíveis. Essa qualidade deve ser vista sob vários aspectos: nutricional, organoléptico, higiênico-sanitário, operacional e conceitual.
A alimentação escolar deve ser saudável, completa, variada e agradável, e deve observar as leis da nutrição nos seguintes tópicos:
a) Proporcionalidade: equilíbrio entre os nutrientes.
b) Moderação: especialmente no consumo de açúcares, gorduras (principalmente a saturada) e sal.
c) Variedade: uma alimentação balanceada não deve ser fundamentada em proibições, devendo, antes, prevalecer o bom senso. As crianças e os adolescentes, justamente por ficarem expostos a alimentos menos nutritivos por prolongados períodos, em vários lugares, precisam aprender a conviver com essa exposição. O programa de alimentação escolar deve ensinar a optar pelo melhor, instruindo sobre os efeitos que cada tipo de alimento pode causar ao organismo. O que não pode acontecer é o alimento menos nutritivo se transformar na principal refeição da criança. Há que se impor um limite, para que os excessos sejam evitados.
O grande desafio está em encontrar maneiras de se prepararem alimentos num estilo que contemple baixo teor de gordura, sal, açúcar e, dessa forma, promova saúde e prazer.
Várias estratégias podem ser empregadas para que essa meta seja atingida. Algumas delas incluem escolha de alimentos adequados, substituição de produtos por outros com baixo teor de gordura, sal, açúcar, utilização de especiarias, ervas e condimentos, técnicas de cozimento, utensílios apropriados, modificação e criação de novas receitas.
A IMPORTÂNCIA DO LANCHE ESCOLAR
Até bem pouco tempo, as refeições obedeciam a um padrão longamente estabelecido. Café da manhã, almoço e janta constituíam as ocasiões por excelência para o consumo de alimentos. Lanches significavam apenas episódios circunstanciais, menores e menos estruturados, no hábito regular de comer. Hoje essa idéia mudou com o conceito do lanche equilibrado, que vem ganhando importância cada vez maior. Um padrão alimentar baseado em quatro refeições, com o lanche equilibrado (da manhã ou da tarde) à base de carboidratos (biscoitos não recheados, pães, bolo ou cereal matinal) acompanhados de fruta, ou suco de fruta, e de leite, ou derivado do leite, resulta em uma dieta com maior teor de carboidratos e menor teor lipídico, colaborando para o melhor controle do peso corporal. De fato, a qualidade nutricional do lanche é um fator de grande relevância. No entanto, o hábito já tradicional de refeições intermediárias, particularmente presente em crianças, adolescentes e adultos jovens, está muitas vezes associado a alimentos tipicamente consumidos como “snacks”, produtos com grandes quantidades de gordura e/ou açúcar. Distanciando-se desse conceito, o lanche equilibrado é por definição um lanche saudável e estruturado.
Quatro refeições é o mínimo recomendado para se fracionar a dieta. O total de calorias a serem ingeridas ao longo do dia deve ser distribuído nas refeições da seguinte forma:
Café da manhã: 25%
Almoço: 35%
Jantar: 25%
Lanche escolar (manhã ou tarde): 15%
Distribuição das calorias diárias em 4 refeições
Refeição | % das calorias | 1-3 anos | 4-6 anos | 7-10 anos |
(kcal/refeição) | (kcal/refeição) | (kcal/refeição) | ||
Café da manhã | 25% | 325 | 450 | 500 |
Almoço | 35% | 455 | 630 | 700 |
Jantar | 25% | 325 | 450 | 500 |
Lanche escolar (manhã ou tarde) | 15% | 195 | 270 | 300 |
O lanche é importante porque permite uma melhor distribuição das necessidades calóricas e de nutrientes da criança e do adolescente, o que é essencial para sua vitalidade e disposição. Intervalos regulares entre as refeições parecem ser o ideal para manter constantes os níveis de glicemia, sem grandes oscilações, permitindo que as funções orgânicas sejam otimizadas sem lançar mão de mecanismos de defesa. Nessas condições, o metabolismo encontra o equilíbrio desejado para ajustar a produção de neurotransmissores, insulina, lipoproteínas, ajuste que reverte em melhor disposição para as atividades diárias, maior capacidade cognitiva, controle da saciedade e prevenção de doenças crônicas da vida adulta. Não se pode esquecer também que, muitas vezes, o lanche escolar é a primeira refeição do dia das crianças que saem de casa praticamente em jejum e, por que não, a primeira refeição balanceada, quer seja feita pela manhã, quer no período da tarde.
Portanto, fica claro a importância do papel das cantinas nas escolas. Estas podem ser administradas pela própria escola (autogestão) ou podem ser terceirizadas. Independentemente desta condição, cantinas, escolas e autoridades de ensino não podem negligenciar a qualidade da alimentação oferecida, pois é na escola que as crianças e os adolescentes passam pelo menos cinco horas por dia, e, como já foi visto, o que eles comem durante esse período pode não só comprometer o rendimento nas aulas, como também trazer prejuízos ao seu crescimento.
Diante disso, as escolas devem reformular suas cantinas com o objetivo de melhorar os hábitos alimentares dos alunos e, conseqüentemente, aumentar a qualidade de vida, sem contar com a força do exemplo.
É importante ressaltar que, atualmente, a cantina escolar não pode ser tratada apenas sob o ponto de vista comercial. As crianças precisam voltar para casa como se estivessem sido alimentadas pelas suas próprias mães. Isso porque, atualmente, muitas famílias não conseguem desempenhar esse papel, por vários motivos, e a escola precisa oferecer educação e alimentação balanceada. A realidade de cantinas sujas, com pessoal mal treinado, vendendo salgadinhos e sanduíches gordurosos, refrigerantes, guloseimas, desvalorizando o que é saudável, deve ficar no passado.
CANTINA X SERVIÇO DE ALIMENTAÇÃO, NUTRIÇÃO E EDUCAÇÃO NUTRICIONAL
As cantinas escolares podem ser divididas em três momentos: passado, presente e futuro. No passado, tínhamos pontos comerciais que vendiam qualquer tipo de produto, sem que houvesse preocupação quanto à qualidade higiênico-sanitária e/ou nutricional. Apenas havia a preocupação de se ter algo para comer no intervalo das aulas, para “matar a fome”. Por isso, ficaram conhecidas como feias, sujas e malvadas.
Atualmente, devido a vários fatores, esse conceito mudou. Hoje as escolas precisam possuir um Serviço de Alimentação e Nutrição. Este conceito é mais amplo, e inclui, além de um ponto de venda de alimentos nos moldes da cantina escolar, uma forte preocupação com qualidade nutricional e higiênico-sanitária, tecnicamente supervisionada, além da real preocupação educacional. Porém, mudar o conceito na teoria não significa que as escolas façam na prática. Isto porque, muita experiência e conhecimento técnico-científico são necessários para implantar esse tipo de conceito.
Como a maioria das escolas ainda não conseguiu implantar um Serviço de Alimentação e Nutrição, sou obrigada a colocar a Educação Nutricional no futuro. Porém, em um futuro muito próximo, afinal a saúde das crianças não pode esperar. Portanto, alimentação, nutrição e educação nutricional apresentam conceitos diferentes. Freqüentemente eles são confundidos porque a alimentação e a nutrição estão diretamente ligadas. A alimentação é a etapa de escolha, preparo e ingestão de alimentos. É um ato voluntário que depende da vontade do indivíduo, bem como disponibilidade do alimento.
A nutrição começa com a ingestão do alimento e se estende à sua utilização pelo organismo. É um ato involuntário que inicia com a introdução do alimento no aparelho digestório. Os alimentos são produtos de origem animal, vegetal e mineral, que fornecem nutrientes responsáveis pelos processos de nutrição.
A educação nutricional tem o papel de ajudar nas seleções alimentares mais adequadas, promovendo modificação e melhoria do hábito alimentar em longo prazo. Deve envolver a todos que, de alguma forma, influenciam na escolha alimentar da criança. O educador nutricional converte teoria em prática e ciência em arte, tendo, como principal objetivo, a independência do educando. Abaixo, as principais diferenças entre Cantina e Serviço de Alimentação, Nutrição e Educação Nutricional:
CANTINA | SERVIÇO DE ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO |
Sempre existiu nas escolas | Conceito novo |
Tratada apenas sob o ponto de vista comercial. Retorno financeiro imediato. | Segurança alimentar e Educação nutricional são seus principais objetivos. O retorno financeiro se dá através de novas matrículas, etc |
Não possui nutricionista ou tem consultoria | Nutricionista em tempo integral |
Não pratica o conceito de qualidade total. | Pratica o conceito de qualidade total (Manual de Boas Práticas / POP’s, etc). Como base, deve ser utilizada a legislação Municipal, desde que a legislação estadual ou federal não preconize requisitos diferentes ou mais rigorosos. Portanto, recomenda-se, no caso de dúvida, buscar informações nos órgãos oficiais, ou seja, a ANVISA e os centros de vigilância estadual e municipal. |
Não existe um Programa de Educação Nutricional | Possui um programa de Educação Nutricional |
Trabalhadores | Profissionais qualificados |
Cardápios desbalanceados | Cardápios balanceados |
Aluno = fonte de renda | Aluno = ser único, com hábitos, preferências e necessidades específicas. |
É melhor que a família não conheça a fundo o trabalho realizado | Funciona como uma ferramenta de marketing. As famílias devem conhecer e divulgar esse diferencial. |
Não conhece o diagnóstico do público alvo, quantos são obesos, magros ou eutróficos | Realiza o diagnóstico populacional da escola, faz um acompanhamento periódico, e aponta as tendências. |
CONCLUSÃO
A diversidade dietética que fundamenta o conceito de alimentação saudável pressupõe que nenhum alimento específico – ou grupo deles isoladamente -, é suficiente para fornecer todos os nutrientes necessários a uma boa nutrição e conseqüente manutenção da saúde.
Dentro desse contexto, as proibições ou limitações impostas devem ser evitadas, a não ser que façam parte de orientações individualizadas e particularizadas do aconselhamento nutricional de pessoas portadores de doenças ou distúrbios nutricionais específicos, devidamente fundamentadas e esclarecidas. Por outro lado, supervalorizar ou mistificar determinados alimentos em função de suas características nutricionais ou funcionais também não deve constituir a prática da promoção da alimentação saudável. Alimentos nutricionalmente ricos devem ser valorizados e entrarão naturalmente na dieta adotada, sem que se precise mistificar uma ou mais de suas características.
A proibição de venda, de determinados produtos alimentícios considerados menos saudáveis em cantinas escolares pode funcionar para chamar a atenção de autoridades públicas, diretores e donos de escolas, pais ou responsáveis, para as quantidades excessivas de gordura, sal e açúcar presentes em refeições escolares. Outra vantagem desta conduta é fazer com que administradores de cantinas, que geralmente não possuem informações adequadas sobre alimentação saudável, não coloquem à disposição das crianças somente alimentos menos saudáveis, levando-se em consideração a facilidade da venda desse tipo de produto e a margem de lucro, que é maior. A discussão da proibição leva a uma reflexão mais profunda sobre os perigos do crescimento da obesidade, da formação de maus hábitos alimentares e da falta de atividade física. É irônico falar em proibição já que a ciência da nutrição defende a variedade, a proporcionalidade e a moderação. Entretanto, o que deve ser feito é selecionar alimentos mais adequados para a venda e orientar não apenas como manter hábitos alimentares saudáveis, mas como preparar as refeições da maneira mais adequada.
(*) Diretora Técnica - Empresa Comer e Aprender
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