O dilema da criação de filhos no Brasil: a ética compensa?
Pais temem ensinar virtudes às crianças e torná-las presas fáceis em um país onde o dever e a verdade parecem vencidos pela mania de levar vantagem
Gabriela Loureiro

"Fazer o certo ou ser feliz?", o dilema que mobilizou filósofos gregos se repete na criação dos filhos
(Enrico Fianchini/Getty Images/Vetta)
A dentista Márcia Costa abomina infrações às leis de trânsito. Em
especial, a prática adotada por muitos pais de parar o carro em fila
dupla, interrompendo o fluxo de veículos, para deixar os filhos na porta
da escola. Ela prefere estacionar seu carro mais longe e fazer os
adolescentes caminharem até lá. Não satisfeita, reprova publicamente os
motoristas que alimentam a irregularidade. Os filhos protestam: "Que
mico!", diz Beatriz, de 15 anos. "Mãe, assim é você quem acaba sendo a
chata da história", afirma Lucca, de 12. A guerra à fila dupla envolveu
até o marido de Márcia, Marcelo, que certo dia colocou a convicção da
mulher à prova: "Você quer estar certa ou quer ser feliz?" É um velho
dilema. Filósofos gregos já se faziam a pergunta há mais de vinte
séculos: uns defendiam que fazer o que é correto, o que deve ser feito, é
o caminho para a felicidade; outros argumentavam que tal conciliação é
impossível.
Ética e felicidade na Grécia Antiga
Pródico de Ceos (século V a.C.), um sofista, acreditava que ética e felicidade eram excludentes. Ele citava o exemplo da escolha de Hércules. Segundo a mitologia, o herói se deparara com duas deusas, a felicidade e a virtude, que o convidavam a viver duas vias distintas. Hércules optava pela virtude em detrimento dos prazeres passageiros. Já Aristóteles (século IV a.C.) pensava que ética e felicidade eram complementares: a primeira como o meio, a outra, como fim.
O dilema vive no Brasil hoje. E se acirrou há poucas semanas com a publicação do artigo do economista Gustavo Ioschpe,
colunista de VEJA, intitulado "Devo educar meus filhos para serem
éticos?" Ioschpe revelou a apreensão de criar filhos em uma nação às
voltas com problemas éticos de estaturas variadas — da ausência de
pontualidade para compromissos à ausência de honestidade para governar. A
certa altura, ele apresentou assim seu dilema: "Será que o melhor que
poderia fazer para preparar meus filhos para viver no Brasil seria não
aprisioná-los na cela da consciência, do diálogo consigo mesmos, da
preocupação com a integridade?" Foi a senha para que milhares de
leitores se manifestassem, compartilhando apreensão idêntica.
Mais de 30.000 pessoas recomendaram o texto, reproduzido em VEJA.com,
utilizando recurso do Facebook; centenas deixaram comentários ao artigo
e espalharam as ideias contidas nele pela internet. Muitos aproveitaram
a ocasião para contar suas histórias, seus dilemas. É o caso de Márcia
Costa e dos demais pais ouvidos nesta reportagem. "Temos que criar
nossos filhos para serem do bem ou para se darem bem? A preocupação é o
quão inocente nossos filhos vão ser se forem educados para serem do
bem", diz a tradutora Samira Regina Favaro Gris. A médica Denise Zeoti
acrescenta: "A ideia de passar valores para minha filha e torná-la uma
presa fácil me assusta. Quero que ela seja uma pessoa ética, correta,
mas não quero que ela seja passada para trás."
Leitores falam sobre o dilema ético na criação de filhos
Sandra Capaldi Arruda, engenheira florestal, Piracicaba (SP)

"Havia algumas regras na escola da minha filha. Uma delas: todos os alunos têm que usar uniformes. Outra: na aula de educação física, as meninas devem prender o cabelo. Um dia, fui à escola e percebi que nenhum estudante usava o uniforme. Na aula de educação física, todas as meninas tinham os cabelos soltos. Comecei a me fazer perguntas: 'Se é uma norma, por que ninguém cobra seu cumprimento?' Mais uma: 'Será que estou sendo muito exigente com minha filha?' Apesar das dúvidas, continuo com a certeza de que as regras são importantes. Se você não exige das crianças respeito às normas, como querer que elas façam isso quando forem adultas?"
Do ponto de vista filosófico, ética é um conjunto de valores e
princípios que define os limites de ação de cada ser humano. "Esse
conjunto nos orienta em três questões fundamentais, intrinsicamente
ligadas à nossa liberdade individual: Quero? Posso? Devo? Minha resposta
depende dos princípios éticos que adoto", diz o filósofo Mario Sergio
Cortella. É uma questão simples de compreender quando aplicada à
prática. De maneira geral, queremos muitas coisas: em alguns casos,
podemos até obtê-las (ou realizá-las), mas, em outros, não devemos
alcançá-las. Pode ser o caso de parar o carro em fila dupla na porta da
escola dos filhos; pode ser o caso de desviar dinheiro dos cofres
públicos. Pessoas eticamente saudáveis, prossegue a filosofia, são
aquelas que podem, mas não fazem o que é errado.

Cortella: felicidade com ética
Quando se trata de ética, portanto, há sempre um choque entre
princípios e ações individuais e coletivos. Seria mais correto, aliás,
falar em éticas — no plural. Cortella tem um inusitado exemplo para
explicar como elas se chocam, e como, no convívio social, a ética se
impõe aos interesses individuais. É a análise do caso de uma casca de
banana atirada ao chão. "Quem a atirou ali propositalmente seguiu a
ética tola, egoísta. Quem viu a casca, mas não a retirou, agiu segundo a
ética da omissão. Finalmente, quem jogou a casca no lixo seguiu a ética
da vida coletiva."
Criar filhos no Brasil demanda preocupação extra por causa dos tipos
de ética que se chocam no ambiente público. Afinal, como convencer os
filhos de que é preciso falar sempre a verdade quando um deputado federal preso por desvio de dinheiro público
é absolvido por seu pares, que asseguram a ele o mandato de
representante do povo? "Uma sociedade em que os poderosos não são
presos, em que nem todos são iguais perante a lei, vive uma contradição
ética. Em público você quer parecer igualitário, mas por baixo dos
panos, para seus parentes, você usa a ética da desigualdade", diz o
antropólogo Roberto Da Matta.
A ética — a da igualdade — pode ser o caminho mais longo e árduo para
os brasileiros, em geral, e para os pais, em particular, rumo à
felicidade. Mas é, segundo filósofo Cortella, certamente o único. "Não é
possível ser feliz quando não se tem paz de consciência. Quem age de
acordo com a conveniência do momento, prega uma ideia e aplica outra,
não terá essa paz. Esse sofre de esquizofrenia ética", diz. "Agir de
acordo com o que consideramos correto é o que traz paz de espírito." No
artigo que levantou a discussão, Gustavo Ioschpe, logo após apresentar
seu dilema, concluiu que deixar de transmistir a seus filhos um legado
ético era uma decisão insustentável. O norte é mesmo a ética.