Da Veja:
'Cota não resolve problema da educação. Ela cria ilusão'
A estudiosa afirma que, apesar da propaganda acerca da reserva de vagas, a esmagadora maioria dos jovens seguirá sem lugar na universidade pública
Nathalia Goulart
Eunice Durham, professora de antropologia da USP
'O vestibular é talvez o mecanismo mais justo de seleção. Só
passa quem tem capacidade. O filho do senador e o filho da doméstica
fazem exatamente a mesma prova. Agora, se os que passam são
majoritariamente provenientes da parte mais rica de população é por
culpa do sistema público, que é de péssima qualidade. Não é o vestibular
que é elitista – é o sistema básico que é desigual'.
Em agosto, a presidente Dilma Rousseff assinou a chamada lei das cotas,
que reserva 50% das vagas de universidades federais a estudantes
oriundos de escolas públicas de ensino médio. Nesta semana, o governador
de São Paulo, Geraldo Alckmin, lançou um programa de inclusão social
para as três universidades públicas paulistas, USP, Unicamp e Unesp –
apontadas nos rankings internacionais como centros de excelência em
pesquisa no Brasil. "Embora a proposta pareça um pouco melhor do que a
lei federal, está longe de ser a solução", diz a antropóloga Eunice
Durham.
Ex-secretária de política educacional do Ministério da Educação, membro
do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP e estudiosa do
ensino superior, Eunice acusa a nova proposta de carregar o mesmo
discurso e enganos revelados em 2002, quando foi adotada pela primeira
vez no país o mecanismo de reserva de vagas (por raça, então), na UFRJ.
"Tanto as cotas raciais como as cotas sociais são remendos demagógicos",
diz. "Existe uma grande desigualdade educacional entre pobres e ricos,
negros e brancos. Mas a questão é que isso está sendo combatido no lugar
errado. Querem consertar as desigualdades do Brasil na porta da
universidade, sendo que o problema se origina na educação básica."
Para quem acha que a posição é ideológica, a professora oferece
números. "Mesmo com toda essa propaganda de que a universidade agora
está de portas abertas para os alunos da rede pública, 95% da população
jovem vai seguir fora da universidade pública." Mais efetivo e justo,
defende a antropóloga, seria a criação e manutenção, pelas universidades
públicas, de cursos pré-vestibulares que preparassem os estudantes da
rede pública para o ingresso no vestibular. "Desde que a universidade
chegou ao Brasil, as famílias ricas recorrem a esse tipo de aulas
adicionais para garantir que seus filhos tenham o conhecimento
necessário para passar no vestibular. Por que não oferecer a mesma
oportunidade para os pobres?", indaga a estudiosa. Confira a seguir
trechos da entrevista que ela concedeu ao site de VEJA.
Como docente da USP e membro da comunidade acadêmica, como a
senhora recebeu a notícia de que a universidade deve aderir ao programa
de cotas do estado? Embora pareça um pouco melhor do que a lei
federal, a proposta do governo estadual está longe de ser a solução.
A ideia pode até ser aproveitada, mas precisa ser melhor analisada. Não
podemos implementar um plano assim, sem testar outras alternativas.
Quais os problemas das políticas de cotas? Tanto as
cotas raciais como as cotas sociais são remendos demagógicos. Entendo
que os problemas que elas visam combater são reais. De fato, existe uma
grande desigualdade educacional entre pobres e ricos, negros e brancos.
Mas a questão é que isso está sendo combatido no lugar errado. Querem
consertar as desigualdades do Brasil na porta da universidade, sendo que
o problema se origina na educação básica. Não é o vestibular que
discrimina. O vestibular é talvez o mecanismo mais justo de seleção. Só
passa quem tem capacidade de passar, não há beneficiados. O filho do
senador e o filho da doméstica fazem exatamente a mesma prova. Agora, se
os que passam são majoritariamente provenientes da parte mais rica de
população é por culpa do sistema público, que é de péssima qualidade.
Não é o vestibular que é elitista – é o sistema básico que é desigual.
Hoje, cerca de 80% dos alunos da educação básica estão
matriculados na rede pública. Não é natural desejar que universidades
federais e estaduais atendam também a essa população? A questão
primordial é que as cotas não dão conta de incluir toda essa
gente. Posso citar alguns números: no estado de São Paulo, menos de 30%
dos jovens estão matriculados no ensino superior – há, portanto, pelo
menos 70% de excluídos. Dos 30% incluídos, as universidades públicas
atendem apenas 15% do total de matriculados, isto é, 4,5% dos jovens –
menos de 5%. As cotas não mudam esse cenário porque não criam vagas,
elas apenas fazem a redistribuição. Querem criar um programa para
incluir mais negros nesse porcentual de 4,5%, mas isso em nada vai
alterar o nível crucial de exclusão que temos. Eu sou contra cota
racial: ela penaliza outra parte da população que também precisa de
estímulos: os brancos pobres.
As cotas são uma falsa ideia de inclusão, então?
Exatamente. Mesmo com toda essa propaganda de que a universidade agora
está de portas abertas para os alunos da rede pública, 95% da população
jovem vai seguir fora da universidade pública. Por isso as cotas são
demagógicas. Elas não lidam com o problema, elas criam uma ilusão.
E qual é o verdadeiro problema? No Brasil, existe uma
cultura de que ensino superior é sinônimo de universidade. Criou-se esse
mito de que todo mundo precisa ser doutor e que curso técnico
profissionalizante é algo menor, degradante. O país precisa oferecer
cursos diferenciados para populações diferenciadas. Tem gente quem quer
aprender sobre as coisas e tem gente que quer aprender a fazer coisas.
Temos que oferecer escola para todo mundo, ou você acha que todo mundo
precisa estudar física quântica na USP? O Brasil tem que decidir se quer
colocar todo mundo na universidade ou se quer criar um ensino superior
que ofereça condições para dar à maioria da população a condição para
continuar os estudos depois do ensino médio, aprender uma profissão, se
inserir no mercado de trabalho e exercer uma cidadania responsável. Mas
você vê alguém discutindo isso? Eu não vejo. Só vejo um monte de gente
querendo sair bem na foto dizendo que vai colocar mais meia dúzia de
estudantes nas universidade federais e estaduais. E achando que com isso
vai resolver o problema da educação no Brasil.
Equacionar esses problemas levaria anos. O que fazer pela
população pobre, majoritária nas escolas públicas, que está no ensino
médio e precisa ser incluída no ensino superior? A solução mais
imediatista que vejo é a criação, por parte das universidades públicas,
de cursos pré-vestibulares de qualidade para alunos de baixa renda
empenhados em ingressar no ensino superior. Alunos das próprias
instituições poderiam atuar junto a professores como tutores e,
estudantes que almejam ser professores, por exemplo, poderiam fazer
estágio nesses cursos. Desde que a universidade chegou ao Brasil, as
famílias ricas recorrem a aulas adicionais para garantir que seus filhos
tenham o conhecimento necessário para passar no vestibular. Por que não
oferecer a mesma oportunidade para os pobres? Esse pré-vestibular
permitiria checar quais são as reais dificuldades dos alunos e os
métodos mais eficazes para saná-las, pensando em depois replicá-los para
a rede pública de educação básica.
O programa do governo estadual prevê que os alunos realizem um
curso prévio, de dois anos, antes de ingressar nas universidades, uma
espécie de 'college' que garantiria um diploma de nível superior. Isso
não seria suficiente? O programa prevê apenas
que os que forem selecionados passem pelo curso. Não adianta nada
privilegiar meia dúzia de pobres. É preciso oferecer oportunidade de
crescimento a muito mais jovens. Pelo sistema que eu proponho, mesmo os
jovens que não ingressarão na universidade pública terão a oportunidade
de suprir as deficiências que acumularam ao longo da vida escolar. E
estarão assim mais preparados para o mercado de trabalho.
Mas a senhora considera que os 'colleges' poderiam ser uma alternativa às universidades no futuro? Eu
sou a favor da criação de ‘colleges’. Seria uma proposta revolucionária
para o ensino superior brasileiro, mas não pode ser um 'college'
emendado a um projeto de cotas para a universidade. Nos Estados Unidos,
eles funcionam bem e atendem a mais da metade da população. Mas, no
Brasil, o projeto ainda está muito cru. É preciso discuti-lo, saber como
seria implantado, sua vigência e avaliação. Do jeito que foi
apresentado, me parece apenas a resposta a uma pressão demagógica.
Indicadores internacionais mostram que as universidades
públicas paulistas são a elite do ensino superior brasileiro,
instituições dedicadas ao ensino e à pesquisa. As cotas podem afetar a
qualidade dessas universidades? Eu acredito que sim. Existem
algumas pesquisas que apontam o contrário. Elas, em geral, dizem que
alunos cotistas têm desempenho inclusive superior aos não cotistas. Isso
tem a ver com resiliência, a capacidade do estudante de se adaptar e
vencer os obstáculos quando lhe é dada oportunidade. Mas no momento que
essas pesquisas foram realizadas, as cotas tinham outra dimensão,
incluíam um percentual muito menor de alunos. Agora estamos falando que
metade de uma universidade será formada por alunos oriundos de uma
escola de má qualidade. Não há como prever o futuro, mas acredito que a
qualidade de uma instituição não depende apenas de bons professores, mas
também do ingresso de bons alunos.
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